Saulo é Professor Adjunto de Ética, Hermenêutica Jurídica e Teoria do Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará. Professor Permanente do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Pará. Professor em a visitante, Doutor e Ex-assistente (wiss. Mitarbeiter) do Departamento de Filosofia do Direito e Filosofia Social da Georg-August-Universität Göttingen (Alemanha). Pesquisador Visitante (2013) do programa Law and Philosophy da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA/Estados Unidos da América). Mestre em Direito pela Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg (Alemanha). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Pará. Ex-bolsista da Fundação Konrad Adenauer (2017; 2009-2013). Membro Permanente do Grupo de Trabalho Filosofia Hermenêutica da ANPOF. Coordenador do Grupo de Pesquisa (CNPq) Teorias Normativas do Direito (www.teoriasnormativas.com).

Humanidades como Ameaça ao Desenvolvimento da Nação

Saulo Monteiro Martinho de Matos
Faculdade de Direito
Universidade Federal do Pará

A proposta do PSL de diminuição de recursos públicos para as humanidades (filosofia, sociologia, história etc.) sob a justificativa de que não se trata de uma área do conhecimento que gera benefícios relevantes para o crescimento da renda da população não é algo novo no Brasil e no mundo. Na verdade, ela expressa uma tendência no mercado mundial e, ademais, faz parte da opinião e sentimento de parte relevante da sociedade. Quem nunca aconselhou o seu filho ou conhecido a cursar uma faculdade ligada às ciências da saúde (enfermagem, medicina etc.), sociais aplicadas (contabilidade, direito etc.), tecnológicas etc. em razão da dificuldade inerente àquelas no que concerne ao mercado de trabalho? É claro que nem sempre isso significa o menosprezo pelas humanidades, como é caso dos pronunciamentos do atual Governo. Mesmo assim, podemos dizer que há um certo ceticismo recorrente sobre a real contribuição de alguém que estuda filosofia, matemática ou história.

Essa tendência de menosprezo pelas humanidades está associada a uma tendência mundial em vincular a produção de conhecimento científico (em todas as áreas), necessariamente, ao impacto econômico e social do produto gerado pela pesquisa desenvolvida e, nesse sentido, excluir pesquisas ou estudos eminentemente teóricos, que não geram impacto imediato nos meios de produção ou na solução de problemas sociais considerados prioritários. Isto pode ser claramente observado em editais das principais agências de financiamento ao redor do mundo e nos próprios editais internos de Programas de Pós-graduação no Brasil, que costumam privilegiar sempre o chamado impacto social da pesquisa desenvolvida.

Quando esse impacto social de uma pesquisa passa a ser associado, exclusivamente, a critérios de renda, como no caso dos comentários do Governo, então, as humanidades são o primeiro alvo. Acerca disso, há uma série de escritos relevantes que buscam defender que o conhecimento científico não pode ser mensurado, exclusivamente, por critérios de renda, como, por exemplo, o PIB. Na literatura mais recente, há o livro de Martha Nussbaum, “Sem Fins Lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades?” (Editora Martins Fontes), o qual apresenta uma argumentação importante em defesa das humanidades. Em última instância, ao reduzir o conhecimento científico às ciências tecnológicas, nós perdemos não só o acesso a uma parcela significativa do conhecimento humano, mas, ademais, é possível dizer que perdemos parte de nossa própria humanidade. Somos humanos porque somos capazes de imaginar, representar a realidade sob diferentes formas linguísticas, determinar a nossa vontade por princípios, participar do nosso ambiente político, entre outras.

Destarte, a importância das humanidades não está só na produção de renda ou solução de problemas econômicos e sociais - que elas, en passant, também contribuem de fato (basta pensar na lógica simbólica, produto de filósofos como Frege e Russell, que é a base para a programação de softwares), mas, também, no desenvolvimento da nossa capacidade de pensar, sentir e agir de modo autônomo, como humanos. Uma política pública contra a importância das humanidades é, assim, uma política de reificação do ser humano, transformando-o em mero produto ou engrenagem na produção, um instrumento para o mercado consumidor e financeiro. As humanidades, com o seu conjunto de conhecimentos, habilidades e competências, possibilitam o uso autônomo da razão por parte da sociedade, necessário para que possamos participar como seres humanos do nosso ambiente político, familiar e do mercado.

Porém, nada disso é novo. O menosprezo pelas humanidades não é produzido por Bolsonaro ou por um partido específico. Está presente no imaginário da sociedade, no nosso dia-a-dia. O que assusta é o modo como isso é utilizado pelo movimento internacional do populismo de direita. Que modo é esse?

Em suma, trata-se, sobretudo, da transformação das humanidades em uma ameaça ao desenvolvimento da nação. O argumento populista do governo consiste em unir duas questões: (a) uma inclinação de parcela significativa da sociedade em considerar as humanidades como um conhecimento que não contribui, de fato, para a produção do país; e (b) a transformação das humanidades em uma ameaça para nação, fazendo com que as pessoas acreditem que o único modo de solucionar o problema da “degradação moral” ou da “crise econômica” seja permitir que o governo adote uma política radical, traduzida como único caminho viável contra a “politização radical da juventude” e “incertezas do presente”. Ao transformar as humanidades em uma ameaça para a nação, o Governo atrai a opinião de pessoas, que, em circunstâncias normais, não aceitariam tal tipo de política pública, colocando em xeque o futuro da nossa democracia deliberativa.

Mas, toda essa estratégia já foi discutida e estudada a contento pelas humanidades. Para uma literatura mais recente: Karen Stenner, “The Authoritarian Dynamic” (Cambridge University Press, 2005).